Esta inversão é também evidente num outro filme que se considera a si mesmo de Ficção Científica - Solaris (1972) de Tarkovsky. Neste filme, curiosamente, nunca chegamos a enxergar o sensitivo planeta alienígeno que representa o futuro da humanidade. E o artefacto futuro da humanidade - a nave espacial - não é mais do que um espaço vazio que é gradualmente preenchido por memórias do passado da Terra. Estas, são memórias de coisas orgânicas, coisas cada vez mais inescrutáveis, cada vez mais presentes com materialidade própria. São memórias do passado devolvido sinistramente ao presente à medida que a busca científica de Kelvin - as suas máquinas e aparelhagens - é progressivamente absorvida por um profundo e inexplicável drama familiar.
O instrumento pelo qual ele comunica com o planeta alienigeno, toma primeiro a forma da sua defunta esposa. Mas aquilo que parece ser um simulacro torna-se carne viva quando nós descobrimos, numa fotografia de família, a sua parecença com a mãe de Kelvin. Na cena final do filme, Kelvin resolve permanecer em Solaris e confrontar o seu futuro que coexiste inexplicavelmente, com o seu regresso à sua casa de infância na Terra, onde faz um silencioso contacto com uma série de coisas - um cavalo, árvores, a casa, o seu pai. Mas este contacto toma lugar num mundo visualmente presente e misteriosamente invertido, onde a chuva agora cai dentro de casa e não no seu exterior.
Temos o mesmo padrão noutro filme de "Ficção Científica" de Tarkovsky - Stalker (1979).
O filme é ostensivamente baseado no romance do irmãos Strugatsky, Roadside Picnic, onde seres humanos encontram a "ZONA", um área prenhe de artefactos aparentemente pertencentes a uma cultura extraterrestre. E se estes artefactos provêm na verdade de uma cultura mais avançada do que a nossa, então representam o nosso futuro também. No filme, todavia, a entrada do protagonista na ZONA é uma antecipação prolongada, e o futuro nunca é mais do que uma possibilidade de ele encontrar tais artefactos. Ele espera em campos verdes familiares entre reconhecíveis máquinas de guerra abandonadas. E nesta área, inexplicavelmente, vagueia um cão preto que se torna mais alien do que qualquer artefacto do futuro. Qualquer que seja a sua origem, o cão ocupa cada vez mais a nossa atenção, tornando-se algo de inefável na sua orgânica presença, no contexto de um falhado futuro tecnológico, trazendo uma aura de mistério, de horrorosa decadência. É como se ao perscrutar o futuro, o protagonista de Tarkovsky tenha invocado, em igual e oposta medida, um passado orgânico que se torna algo terrivelmente impenetrável.
Na sua "pureza de coisa" parecerá pertencer só ao Éden, o seu lugar ontológico original. Só aqui no paraíso, cada coisa se prenche a si mesma, sem passado nem futuro, só presença. O pecado original da espécie humana, associado à ciência, tem introduzido mudança, criando um sentido de futuro.
O que está em causa com Victor Frankenstein, todavia, não é o seu pecado original mas um pecado em segundo grau - o pecado contra a segunda chance da ciência moderna oferecer à humanidade, refazendo o seu corpo caído, e direccionando-a para "as coisas que hão-de vir". Victor abre a porta do futuro só para trair essa via que abriu.
Perseguindo Victor a transformação da natureza animal através da razão, a mesma animalidade, de uma maneira igual e oposta, permanece como coisa inerte no caminho, não só do Frankenstein mas de todos os nossos sonhos do futuro. A criatura avisa Victor: " Tú és o meu criador, mas eu sou o teu senhor". Mas aquilo que a criatura chama de Senhoria, não passa de uma cada vez maior presença numa série de impedimentos no destino de Victor - a família, os amigos, finalmente a esposa e potencialmente a descendência. Este monstro, como os animais de Tarkovsky, simplesmente são Travesties materiais do cogito cartesiano.
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